ENCANTAMENTO X ESPANTO por João Luiz Muzinatti.
O que pode fazer com que uma criança, um
adolescente ou, até mesmo um adulto, se apaixone pelo conhecimento? E, aqui,
paixão representa aquele sentimento capaz de fazê-lo abrir mão de momentos de
lazer ou de descanso para estudar, buscar soluções para problemas desafiadores
ou simplesmente querer saber mais (e procurar respostas) sobre determinados
temas. “Um professor motivador”, muitos responderiam. Mas, quem é esse mestre
capaz de fazer com que o aluno queira saber mais – e não se contente com o que
é apenas necessário?
Certa feita, preparei cuidadosamente uma aula,
quando ministrava Filosofia num curso de graduação em Pedagogia. Ficou
simplesmente maravilhosa. E os alunos, de fato, se encantaram com o tema e a
abordagem. Participaram o tempo todo, com qualidade. Após momentos de uma
discussão deliciosa, perto do final da aula, uma aluna da primeira fila me
pediu para “fechar logo a aula” pois não se aguentava de curiosidade sobre o
desfecho daquele debate. Não tardei em resolver suas dúvidas e apresentei o grand
finale. Todos ficaram ainda mais maravilhados e a aula foi fechada da
melhor maneira possível – pelo menos, foi o que pensei. Deixei a sala com a
alma lavada e aquele ânimo que temos quando sentimos que nossa aula valeu a
pena. Pensava que havia plantado a sementinha da paixão, que faria com que a
maioria passasse a semana envolvida com o tema.
Na semana seguinte, porém, entendi que me
equivocara enormemente. Ao perguntar sobre quantos haviam lido o texto
suplementar que indicara, percebi, para minha surpresa e desalento, que ninguém
havia se debruçado sobre o tema. Ninguém! A discussão maravilhosa, que foi capaz de fazê-los
se encantar por um determinado tema da Filosofia, parecia ter morrido naquela
mesma noite. Onde estavam aqueles alunos que ficaram maravilhados? Afinal, “a
aula havia encantado a todos”, me dissera, animadíssima, a coordenadora, no dia
seguinte. Mas, que ânimo era aquele que, em menos de sete dias, não conseguiu
fazer com que um único aluno se dispusesse a rever e aprofundar o tema? A aula
fora ótima! Participação total! Encantamento! O que havia saído errado, então?
Ao indagar os alunos, ouvi, entre outras desculpas
- a maioria havia me alegado ter várias ocupações paralelas -, que a aula tinha
sido ótima e que não necessitaram de mais nada. Estavam satisfeitos! Agora,
bastaria darem uma estudada para a prova e tudo sairia bem.
Claramente percebi que havia dois objetivos
distintos. Da parte deles, o importante seriam as boas notas na prova – e, de
quebra, ainda desfrutaram de um momento delicioso, pensando e dizendo coisas
com que nunca, nem sequer, sonharam. De minha parte, não queria que se
preparassem apenas para a prova. Aliás, nem pensara nisso quando planejei a
aula. Vislumbrava estudantes pensando, buscando novas respostas e – o que é
melhor – novas questões. Gente querendo encontrar novos caminhos de percepção
do mundo. Gente que se transformasse a partir da aula e que projetasse essa
transformação no mundo. Gente querendo cada vez mais conhecimento! Afinal, para
onde escoara todo aquele encantamento?
Meses depois, naquele mesmo ano, vivenciando
frustrações desse mesmo tipo e não sabendo como mudar a situação, aconteceu um
fato que mudaria radicalmente minha percepção e minhas aulas. Num desses debates cuidadosamente planejados e
articulados, os alunos estavam em clima de êxtase, já esperando pelo
“fechamento” da aula, quando a solerte coordenadora entrou na sala para dar um
aviso. Lembro-me muito bem: iria informar aos alunos que, no dia seguinte, não
haveria aulas em razão de uma reunião.
Apesar de contentes com a notícia, viram,
frustrados, que os dois ou três minutos de conversa com a coordenadora haviam
lhes roubado os últimos instantes da aula. Isto significava que o “fechamento”
da minha aula teria de esperar até a semana seguinte para acontecer.
Alguns não pareciam frustrados, mas havia boa parte
da sala querendo uma palavrinha ou outra sobre como o dilema criado se
resolveria. Não podendo finalizar em respeito ao professor da aula seguinte que
chegava, fiz apenas uma indicação de um livro onde encontrariam uma pista para
que o mistério fosse desvendado. Tratava-se de um posicionamento filosófico de
um autor – Sartre, para ser mais exato - sobre certa questão filosófica,
e o livro indicado era um manual de filosofia, o qual discorria também
sobre o pensamento sartreano.
Saí sem grandes expectativas, pois sabia que uma
semana – ainda mais com um feriado no meio – era o suficiente para fazer
dissiparem-se todos os amores que a Filosofia ou qualquer outro campo do saber
pudessem despertar. Na semana seguinte, já havia me preparado para
terminar a discussão sobre o tema anterior e preparara inclusive um novo
assunto para a discussão da noite. Porém, não foi possível levar a cabo meu
planejamento. E isto por uma simples razão. Três alunas, que haviam procurado
as respostas no texto indicado, traziam, mais que soluções, novos
questionamentos sobre Sartre. E o que é mais interessante: haviam buscado novas
fontes para tratar as minhas e as novas questões levantadas.
Em poucos minutos, conseguiram mobilizar e agitar
toda a turma e a aula foi muito mais rica do que jamais pudera imaginar. E fui
quase que um consultor eventual, pois as meninas pareciam querer dirigir a
aula. Falavam com fluência e embasadas pelos textos todos que haviam lido. No
final, não deixei de fechar a aula, mas foi muito, muito além do que previra. A
aula dera frutos e três pessoas – e mais algumas que ficaram seduzidas pelo
brilho dos olhos das primeiras – passaram a amar e (pasme-se) ler Sartre – por
curiosidade e prazer.
Pensei, naquela noite, que talvez uma pequena luz
havia se acendido. Sim, pois, se encantamento não sobrevivera, um outro fator
havia aparecido. O incômodo. Ou, por que não dizer, o espanto! Naquele
momento, lembrei-me dos dizeres de Aristóteles sobre o saber filosófico surgir
do espanto. E pensei que se espantar não é o mesmo que se encantar.
Afinal, qualquer beleza pode nos encantar, mas não nos intrigará se já nos for
apresentada pronta e acabada. O mundo narrado nas suas curiosidades e belezas
nos fascina. Mas, somente quando nos deparamos com situações que nos incomodam
e nos tiram o sossego, é que nos mobilizamos para tentar saber de suas
verdades. Em outras palavras, somente quando algo nos causa espanto é que
passamos a querer dominá-lo e desvendá-lo de fato.
O humano sempre se espantou com as situações
fantásticas e enigmáticas da natureza – tempestades, o dia e a noite em
períodos regulares, a própria morte e tantos outros fenômenos. Mas, o elemento
mais forte sempre foi o fato de não possuir respostas imediatamente à mão. E
isto fez com que tentasse desvendá-las a qualquer custo, fosse buscando
respostas nas mitologias, nas religiões ou, mais tarde, usando somente a razão
e o mundo natural observado como material e equipamentos de investigação.
Afinal, a necessidade de compreendê-las, até mesmo para dominá-las, causava
inquietação e tirava qualquer tranquilidade.
Espanto pode ser entendido como sobressalto, susto ou,
até, assombro perante algum fato. Espanto acontece não só pelo
encantamento, mas também pelo desassossego por não se dominar as causas, os
porquês, as mais variadas (e possíveis) decorrências. Não posso deixar de
pensar na situação tão comum da pessoa que tem diagnosticada para si uma
enfermidade um pouco mais séria que o comum. Sem que lhe seja ordenado ou
sugerido, parte para uma investigação minuciosa sobre a tal doença. Pesquisa,
consulta várias fontes, compara-as. Tudo deve ser muito bem entendido. E
é comum nos admirarmos com a fluência com a qual a pessoa fala sobre sua
enfermidade. Não se contenta com o conhecimento superficial, mas quer saber
muito. Quer saber tudo!
De alguma maneira, os grandes pensadores
(cientistas, filósofos) devem ter sido tirados de seu estado de conforto,
quando se espantaram com alguma situação da natureza, do ser humano ou do que
quer que seja. Saíram do conforto porque as respostas não lhes foram sopradas
por ninguém. Se formos procurar na história da vida de gente como Galileu,
Newton ou Einstein, veremos que, apesar de brindados pela vida com grande
inteligência, somente lograram grandes feitos porque, lutando contra empecilhos
de todos os lados, puderam sanar boa parte do espanto que os fenômenos da
natureza lhes trouxeram.
Sem dúvida, a interrupção despretensiosa da
coordenadora me abriu um novo e importante caminho. A partir daquele dia,
comecei a não dar mais as coisas prontas para os alunos. Além disso, tornei o
enfoque dos temas mais complexo. Ao encantamento possível, passei a colocar
elementos de desassossego, de incômodo, de espanto. Mais que espetáculos para encantar,
minhas aulas passaram a ser desafios, enigmas a serem desvendados. A partir
dali, pude chegar nas semanas seguintes e perceber que pelo menos alguns alunos
da turma haviam se debruçado sobre meus mistérios.
É verdade que deixei de ser unanimidade. Alguns
passaram a me ver como o sujeito que não facilita as coisas. Não era mais o
“amigão”. Afinal, trocara o encantamento pelo espanto. Mas, as aulas estavam
sempre concorridas, principalmente no seu início. E descobri uma outra coisa:
passei a trabalhar menos. No início de cada aula, para “fechar” as
discussões, sempre apareciam jovens pesquisadoras repletas de argumentos,
cheias de vontade e tratando o meu tema como a um fenômeno gigantesco e
fantástico. Ou, penso eu, hoje, como a uma doença incurável. É isso! E talvez
elas próprias nunca mais tenham se curado daquele desejo de buscar respostas a
qualquer custo. Quem sabe não estejam doentes de paixão?
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